Theodor de Bry foi um escritor de Liége, na Bélgica, que se tornou referência sobre o Brasil na época do descobrimento. Por meio de suas ilustrações sobre o ritual antropofágico tupinambá, se tornou um especialista sobre a temática do “novo mundo”.
Em um primeiro momento, acredito ser importante comentar sobre a falta de dados concretos e empíricos, no que diz respeito a fontes historiográficas primárias nessa temporalidade. Desta forma, as retratações pictóricas, poemas e crônicas, serão utilizados enquanto fontes históricas. Assim, os relatos europeus de suas mais diversas maneiras, corroboram para uma erudição sobre o período colonial no Brasil, sobretudo no recorte tratado aqui, sobre o ritual antropofágico.
É importante saber diferenciar os relatos europeus sobre o evento, uma vez que sob uma perspectiva europeia e por sua vez, cristã, os rituais eram vistos enquanto práticas pagãs, carregados de significados profanos. No caso da gravura de Bry, marca um processo de múltiplas referências ligados ao imaginário do povo europeu, bem como valores fixados nesta sociedade. Então as retratações e desenhos, são feitos muitas vezes com alegorias incitando a “barbárie”, a exemplo da antropofagia, a poligamia etc. Era como retratar um ambiente infernal ligado a figura do canibalismo. A retratação é diretamente afetada, uma vez que Theodor de Bry nunca esteve de fato, no Brasil, e tampouco seria capaz de retratar com rigor histórico os rituais antropofágicos, portanto é justificado o caráter demoníaco da mutilação. As índias, nesta gravura, portam membros decepados, devoram braços e pernas com voracidade. Assim, nesse sentido, as mulheres estariam associadas a bruxas e feiticeiras. Acho até curioso como esta passagem é retratada, uma vez que é comum perceber como os índios “devoravam” e se apossavam do corpo do inimigo morto, quando na verdade, era um processo muito mais complexo. Os ameríndios não comiam da carne crua, e tampouco criavam uma cena cheia de sangue, colaborando para esse festim diabólico, cheios de elementos negativos.
Os rituais aconteciam em caráter difuso entre as tribos uma vez que cada uma exercia atividades com dinâmicas próprias. Sendo assim, o ritual não era um processo homogêneo, embora fosse este o momento em que a tribo se encontrava reunida. A tribo estabelecia estruturas funcionais, com chefes das aldeias, que era visto como uma figura xamânica.
Cada maloca dentro da aldeia tinha um tipo de “responsável” ou o “principal” , que era alguém que conseguia reunir em seu núcleo familiar, o maior número de parentes. O processo de constituir esse núcleo, dependia da capacidade do homem de adquirir o maior número de genros. Essas relações se davam a partir de estratégias matrimoniais. Portanto, todo homem além de sogro, deveria ser um grande matador. As mulheres representam nesse sentido, interlocuções para tais estratégias, onde as tribos teciam intercâmbios entre si.
O processo ritualístico da antropofagia podia durar dias, e até mesmo o cativo poderia incorpora-se às atividades da tribo que o capturou. Um cativo valia por uma mulher, e assim, entrava no circuito de trocas matrimoniais. O “serviço da noiva”, era fornecer alimento para o capturado, para que posterior, ele mesmo fosse devorado.
Penso ser, de certa forma, equivocado de minha parte, associar a mulher como símbolo de maternidade, uma vez que este termo se enquadra a uma visão patriarcal e europeia ao imaginário da mulher, contudo, pude perceber durante as discussões sobre o eixo temático, e também utilizando do texto de Carlos Fausto (1992), que as mulheres desempenhavam um papel importante durante o ritual. Eram elas que preparavam uma bebida fermentada a base de mandioca, chamada caium, que antecedia o ritual. A própria feitura da bebida se manifesta enquanto caráter cultural dos nativos, e é associado diretamente ao ritual antropofágico.
No dia em que se é servido o caium, é o dia que se faz as danças tradicionais, e entende-se assim, que no dia em que se bebia, não comia. Ou bebia-se e dançava, ou matava e comia. Regado a muito caium e danças ritualísticas, criavam uma encenação da morte do guerreiro. O cativo também gritava para as mulheres que ele seria sua futura comida e elas, por sua vez, dançando e cantando, o cercavam e o davam-lhe socos, para vingar a morte de seus antepassados. No dia seguinte, quando se iniciava de fato, o processo antropofágico, era comumente sabido que o guerreiro dava um golpe certeiro no capturado, realizando assim, uma morte rápida.
Quando o guerreiro era morto, era incumbido a mulher o papel de preparar a carne do guerreiro morto, e mesmo que intrinsecamente, isso representava confiança. Somente uma figura de muita confiaça na tribo podia desempenhar tal atividade.
As mulheres que preparavam o corpo do guerreiro morto para o consumo do restante da tribo. Além de prepararem o corpo para se alimentarem dele, a comida era feita das mais variadas formas, seja cozido, seja forma de sopa e etc, ou até mesmo quando lambuzavam seus seios de sangue, para que aqueles que ainda não podiam usufruir da comida sólida e processada, pudesse também ter contato com o inimigo e participar desse processo.
Para mais informações, ver FAUSTO, Carlos. Fragmentos de História e Cultura Tupinambá: Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.). História dos Índios no Brasil. Fapesp/ SMC: Companhia das Letras, 1992 (p. 391-392).