Era uma vez um homem. O homem que dormia ao meu lado todo dia. Ele era baixinho, tinha cabelos dignos de preguiça ou de quem achava um grande desperdício gastar dinheiro com shampoo masculino (convenhamos, eu também acho). Ao lavar o rosto, escorregava suas mãos pelos cabelos e os enxaguava com a espuma do sabonete mesmo. Ele era aquilo que um conhecido meu chama de “compacto”. Com 1,65 de altura, 10 quilos acima peso, ou 15. Seu corpo nunca foi meu foco de atenção, mas era impossível deixar de reparar uma barriguinha que pulava o cós de sua calça e deixava à vista o resultado do pão com ovo, ingerido diariamente, às 20h30, enquanto passava o Jornal Nacional.
O homem que dormia ao meu lado todo dia gostava de azul. Como Roberto Carlos no especial de final de ano, como o mar do Caribe, como os olhos da Xuxa: o homem estava sempre em tons que me lembrava o céu. Em dias nublados, contrastava com o cinza, e em dias de Sol, sua cor irradiava toda luz que ele não tinha. E pela altura do campeonato, nunca iria ter. Além de uma mochila preta, o homem carregava consigo falta de esperança que o levou a um caminho medíocre, onde o ponto de descanso estava em uma poltrona de couro velho, numa sala com iluminação fraca.
O homem que dormia ao meu lado todo dia também era míope. E nunca conseguiu concluir se era melhor permanecer sem enxergar, ou ser capaz de ler que sua conta de luz iria aumentar em 30%... Que seu plano de saúde estava com a cobertura limitada e que seu biscoito preferido tinha 479 mg de sódio. Qual o sentido da tristeza se não há comida gostosa para nos confortar? O corpo era fraco, e a alma solitária. O homem que dormia ao meu lado todo dia era também um homem triste. Em sonhos, buscava tudo que não conseguira até os atuais 47 anos de idade.
Não teve filhos, cultivava 4 poucos e bons amigos, uma samambaia na varanda e eu, que – religiosamente (só no sentido figurado mesmo), sentava ao seu lado no banco do ônibus. O homem que dormia ao meu lado todo dia nunca abriu os olhos para mim, sequer me deu "bom dia", mas, de certa forma, ele me tinha como sua maior admiradora, que na loucura de imaginar quem ele seria, adormecia. E a cada caminho casa-trabalho, das 7h20 às 8h, dividíamos um banco de ônibus, uma janela, e um apoio de braço.
Não conversamos, não assistimos a um filme cult. Não fizemos uma trilha com fotos de GoPro, nem dividimos uma série na academia. O homem nunca me contou um segredo, ou os segundos que faltavam para o ano virar. Nunca caímos numa piscina, ou de beber. Nem mesmo caímos em contradição. Juntos, só caíamos de sono, dentro daquele ônibus.
Um dia, ao embarcar, percebi que o banco estava vazio. Ele não estava mais lá. Meu sono também não. O tempo passou, as pessoas eram as mesmas, o caminho também, mas faltava algo naquele ônibus. Por muito tempo senti saudades daquele homem, tão íntimo, que eu não ouvira a voz. Era o homem que dormia ao meu lado todo dia, e eu não conhecia.